Ashura: êxtase e lágrimas no Irã

Homens cobertos de sangue batendo em seus próprios corpos com correntes, enquanto choram, cantam e gritam em catarse coletiva.

Certamente estas cenas estão entre as que vêm à cabeça de muita gente quando alguém fala do Irã. Mas a parte mais chocante delas é apenas outro exemplo de estereótipo errado sobre o país.

O ritual existe e se chama Ashura. Também existem a catarse, o choro, os cantos e os gritos. Mas, no Irã, os homens sangrando são coisa do passado, enquanto as correntes contra o corpo são muito mais um objeto cenográfico do que algo feito para realmente doer.

Cerimônia da Ashura, em Yazd – Gabriel Prehn Britto (CC BY-NC-SA 2.0)

Cerimônia da Ashura, em Yazd

Mesmo que não seja tão forte quanto nas imagens que aparecem na imprensa, a Ashura é sem dúvida emocionante e impressionante, e ver a cerimônia ao vivo é viver o ponto mais alto da religiosidade xiita e iraniana. Algo que eu, numa baita coincidência (não havia me programado) consegui fazer na minha primeira viagem para lá.

A Ashura é uma cerimônia com séculos de tradição e não consegui descobrir desde quando ela acontece. Mas o ano que gerou o ritual é conhecido de todos que estudam algo sobre ele e absolutamente inesquecível para os xiitas: 680 d.C.

Naquele ano, Maomé já tinha morrido, sua sucessão oficial já havia sido exercida por 5 homens e estava nas mãos do 6º, chamado Hussein, seguidor do xiismo e neto do próprio Maomé.

Imã Hussein, no bazar de Tabriz. Ao contrário da crença geral, os xiitas fazem imagens de seus ídolos religiosos

Imã Hussein, no bazar de Tabriz. Ao contrário da crença geral, os xiitas fazem imagens de seus ídolos religiosos

Mas a dinastia sunita mais poderosa da época não reconhecia Hussein como o sucessor legítimo do profeta e entrou em conflito com ele. Em determinado momento, o exército da tal dinastia cercou o acampamento onde Hussein estava com mais 72 seguidores – incluindo mulheres e crianças – e ficou lá por 9 dias, impedindo que eles tivessem acesso a água e comida.

No décimo dia, o exército (em número muito maior), aproveitando a fome, a sede e a fraqueza dos homens cercados, partiu para o ataque, massacrando todo mundo. Hussein acabou decapitado e seu filho, ainda um bebê, morto sem piedade.

O acontecimento ficou conhecido como a Batalha de Kerbala, por causa do nome da cidade onde aconteceu (hoje no Iraque), e transformou Hussein no símbolo e no mártir dos xiitas, por ter se sacrificado defendendo a sua fé, lutando contra líderes que ele e seus seguidores consideravam corruptos e sem pureza na alma.

A Batalha de Kerbala, de Abbas Al-Musavi, em exposição no Brooklyn Museum (Domínio público)

A Batalha de Kerbala, de Abbas Al-Musavi, em exposição no Brooklyn Museum (Domínio público)

 A Ashura é a lembrança anual da Batalha de Kerbala e o momento em que os xiitas se dispõem a sofrer como Hussein – por isso as batidas e as correntes contra o corpo.

Yazd Ashura

Ela acontece no 10º dia do mês chamado Muharram do calendário muçulmano (que muda sempre no nosso calendário, porque é guiado pela lua). Mas a preparação e alguns rituais começam semanas antes, com faixas espalhadas pelas cidades, músicas em tom choroso ecoando em todos os cantos, distribuição de comida em tendas montadas nas ruas, desfiles com homens carregando uma enorme estrutura de ferro e muita, muita gente vestida de preto.

As cenas de catarse, choro, cantos e gritos começam às vésperas da grande data e são incríveis de se ver, mas tudo ainda fica limitado às mesquitas. No dia da Ashura é que a mágica acontece de verdade.

As cidades com população mais religiosa ficam intransitáveis, com engarrafamentos monstruosos e calçadas tomadas de gente. Todos querem chegar nos Hosseiniehs, os complexos onde acontecem as celebrações, quase sempre formados por uma grande praça, cercada total ou parcialmente por uma construção de 3 ou 4 andares abertos, com espécies de sacadas.

É nestas sacadas que as mulheres se posicionam (e também nos topos dos prédios com vista para os complexos) enquanto homens se aglomeram na praça central, junto a uma enorme estrutura de madeira que representa o caixão de Hussein e seus 72 companheiros, chamada de Nakhl.

Ashura Mulheres Janela

Ashura Povo no Hosseinieh

O Naklh em Tazd, um dos mais antigos do país, aquui já enfeitado para a Ashura

O Naklh em Yazd, um dos mais antigos do país, aquui já enfeitado para a Ashura

Então eles começam a cantar e a bater em seus corpos com as mãos ou com as correntes, comandados por líderes que berram aos microfones e relembram o sofrimento de Hussein, criando um ritmo hipnotizante até mesmo para quem não segue a religião e não entende nada do que está sendo dito.

O ritual da autoflagelação dura horas, mas não é igual durante todo o tempo, porque a multidão masculina é dividida em vários grupos diferentes. Muitos apenas se batem, por exemplo. Outros levam bumbos que ditam o ritmo das pancadas. Outros desafiam a dor carregando e girando mastros de bandeiras enormes. E mais tantos se cobrem de lama trazida de Kerbala (e, portanto, coberta com o sangue de Hussein).

Ashura Geral Mesquita

Cerimônia na mesquita. Mulheres nas laterais e no fundo, na parte superior

Ashura Grades Mesquita

Quem não entra na mesquita não perde a cerimônia mesmo pelo lado de fora

Ashura Lider

O líder do grupo dita o ritmo e canta histórias de Hussein

Ashura Homens Batendo

ashura

Ashura Meninos

Crianças também participam. A mancha nas costas dele é de lama de Kerbala

Ashura Tambor

Ashura Instrumentos

Ashura TV

TVs no país inteiro transmitem a Ashura. É praticamente impossível encontrar um canal que não mostre algo

Ashura Camera Celular

É um show

Em muitos lugares, tudo isso é acompanhando de uma encenação dos acontecimentos da Batalha de Kerbala. E em todos, o final das cerimônias é sempre o mesmo: dezenas de homens levantam a tal estrutura de madeira – cujo peso chega a toneladas – e começam a correr em círculos pela praça, com ela nos ombros.

Ashura Nakhl

Quando terminam, depois de darem um punhado de voltas, o êxtase é total.

As batidas param. Os homens nos microfones embargam as vozes. Os que carregaram o caixão desabam em lágrimas – talvez também aliviados por saírem vivos do ritual, já que o peso da estrutura, a correria e a aglomeração volta e meia causam mortes. O som que domina é o dos soluços e o do choro desesperado da multidão, em conjunto. Alguns choram como se tivessem perdido algum parente muito querido.

O êxtase coletivo

O êxtase coletivo

Ashura sofrimento

Entre as maiores metrópoles iranianas, a linda e turística Yazd é certamente o melhor lugar para se acompanhar a Ashura. Mas o melhor lugar entre as cidades pequenas – e provavelmente o melhor do país – fica a menos de 20 km de Yazd, em Zarch.

Lá, uma encenação gigantesca mostra em detalhes o que aconteceu em Kerbala, com participação de várias dezenas de atores, carros alegóricos (na verdade, carretas enormes que passam perigosamente pelo meio da multidão) e até um incêndio assustador na tenda que representa a barraca de Hussein.

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Multidão em Zarch

Yazd Ashura

Ashura Cabeça Hussein

Homem representando um árabe sunita vendendo a cabeça de Hussein. O homem à direita é cristão e faz ofertas desesperadamente para comprar e entregar seus companheiros aos xiitas

Ashura Arabes

Homens representando os árabes que mataram Hussein

Enquanto o pessoal de Zarch vê tudo isso, uma outra multidão espera o grande momento do levantamento da maior daquelas estruturas de madeira no Irã, que acontece no fim da tarde, em Taft, a 50 km de Yazd.

O povo se aglomera nos telhados e na estrutura do Hosseinieh. O objetivo é conseguir um bom lugar para assistir a um grupo de homens que entra correndo e gritando na praça central, agarra o Nakhl do tamanho de um prédio e corre em círculos com ele. No final, o mesmíssimo êxtase dos outros lugares, o mesmíssimo choro desesperado.

Ashura Taft telhados

Ashura Taft

A Ashura em Taft

Olhando assim, pode parecer que eu tenha exagerado quando disse, lá em cima, que a parte mais chocante da Ashura é apenas outro estereótipo errado sobre o país. Mas é isso mesmo. A Ashura é impactante, mas não é violenta. Ao menos não no Irã.

O autoflagelo em busca de sangramento foi proibido para os iranianos ainda na década de 1980, pelo antigo líder religioso Aiatolá Khomeini – e mesmo antes dele, muitos líderes religiosos xiitas já condenavam a prática. Desde então, os fiéis mais fervorosos são estimulados a doar sangue em hospitais e o máximo que se vê nas ruas são homens cobertos de tinta vermelha.

Simpatia mesmo durante o período de luto da Ashura. (Calma, isso não é sangue: é tinta)

As correntes são leves e dificilmente causam alguma dor realmente significativa – eu vi, peguei nas minhas mãos. Além disso, segundo iranianos me contaram, muitos homens colocam proteções nos ombros, por baixo das camisas pretas, para diminuir ainda mais o impacto e qualquer dor.

Correntes ashura

No fim das contas, analisando friamente e sem os preconceitos comuns em relação aos iranianos, a Ashura não é nada muito diferente da Semana Santa cristã, quando devotos caminham quilômetros de joelhos ou carregam cruzes pesadíssimas, enquanto encenações da Paixão de Cristo lembram que Jesus sofreu e morreu pela humanidade.

(Sem mencionar que a Ashura iraniana certamente não chega aos pés da violência da Semana Santa nas Filipinas, onde homens se crucificam de verdade.)

Reencenação da Paixão de Cristo nas Filipinas, por Shutterstock

Reencenação da Paixão de Cristo nas Filipinas, por Shutterstock

Mas o mais importante é que, como sempre acontece no Irã, o clima geral na Ashura, ainda que coberto por tristeza e luto, é de profundo respeito com os visitantes.

Em todos os lugares por onde passei no período, recebi muitos sorrisos, atenção e curiosidade, ganhei comida de graça, fui colocado nos melhores lugares para fazer fotos, recebi agradecimento pelos alto-falantes (“obrigado aos visitantes estrangeiros”) e até dei entrevista para uma emissora de TV.

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O gringo exótico sendo entrevistado

38 - Ashura meninos

Ashura Comida

A comida distribuída. Não tem um aspecto muito bom, mas é ótima

34 - Ashura homem barro

Um dos que se “sujam” com a lama de Kerbala

32 - Ashura mulher criança

Muitas crianças são levadas para a Ashura, lembrando o bebê de Hussein, assassinado na batalha

http://gabrielquerviajar.com.br/ira-prologo/

Lembre-se: chador nunca, nunca, nunca significa antipatia

Para mim, esta é a verdadeira imagem da Ashura iraniana.

 

a ashura na prática

Quando acontece?

A Ashura muda a cada ano do nosso calendário, porque segue o calendário muçulmano (regido pela lua). Isso significa que você vai ter que pesquisar no Google para saber quando vai acontecer no ano em que você for.

Dica: a cada ano, a Ashura acontece um pouco mais cedo no nosso calendário. Em 2016, vai ser em 12 de outubro.

 

Onde assistir?

A melhor cidade grande para ver os rituais e as encenações que eu descrevi acima é Yazd. Mas a melhor cidade pequena é Zarch, a 20 km de Yazd, junto com Taft.

Dizem que a Ashura é muito diferente e interessante em Khorramabad, na província do Lorestão. Por lá, as pessoas se cobrem inteiramente de barro.

Independentemente de onde você estiver, procure informações no seu hotel. Você pode ver a Ashura em praticamente todas as cidades grandes, até em Teerã.

 

Dá para ver a Ashura em Yazd, Zarch e Taft no mesmo dia?

Até deve dar, mas você vai ver só um pouco de cada. Eu consegui ver Zarch e Taft.

 

A Ashura acontece em todo o Irã?

Não. Em regiões onde a maioria da população é muçulmana sunita, ela não acontece. Exemplo: Curdistão.

 

Existe alguma recomendação em relação à roupa durante os dias da Ashura?

Sim. É melhor que mulheres se vistam de forma mais recatada, em respeito ao momento. E tanto homens quanto mulheres serão mais bem vistos se usarem roupas pretas. Não é preciso se cobrir de preto da cabeça aos pés, mas é legal evitar cores muito chamativas. Lembre-se: é um momento de luto, ainda que as pessoas estejam agindo normalmente nas ruas.

 

É possível fotografar?

Sim, mas a boa educação exige que você seja respeitoso e discreto. Não chegue numa mesquita apontando a câmera para todos. Chegue devagar, com a câmera baixa e fique quietinho. Certamente não vai demorar muito para alguém estimular você a fazer as suas fotos. Foi assim que aconteceu comigo e, quando percebi, já estava em cima de uma estrutura utilizada por uma emissora de TV que transmitia tudo ao vivo, com um ótimo ângulo.

 

Mulheres podem assistir à Ashura nas mesquitas?

Podem, mas nas áreas reservadas para as mulheres (geralmente ao redor de onde ficam os homens).

 

Mulheres podem ficar no centro do Hosseinieh?

Não sei afirmar. Eu vi mulheres por ali em determinados momentos, mas elas estavam em grandes grupos e não estavam lá no meio dos homens. Minha mulher foi para as laterais, junto com todas as outras.

 

Como chegar e onde ficar em Yazd?

Leia o post com dicas práticas.

 

Como chegar em Zarch e em Taft durante a Ashura?

Não sei como fazer isso de transporte público. Eu estava com um guia e fui no carro particular dele, mas acredito que seja muito fácil conseguir uma carona, já que todo iraniano vai ficar orgulhoso de levar um gringo para lá. Pergunte no seu hotel ou saia pela rua tentando.

 

Ah, então dá para contratar um guia durante a Ashura?

Sim, dá. E eu recomendo o Mohsen e a Pegah, que vivem em Yazd. Leia o post com dicas práticas para saber mais sobre eles.

 

Posso comer a comida que é servida gratuitamente?

Pode e deve. É um sinal de respeito e todos vão ficar felizes por ver um estrangeiro experimentando. Mas se não quiser, não se obrigue. Tudo bem.

 

Então não tem sangue mesmo?

Só de cabras, ovelhas ou outros animais que podem ser sacrificados, mas não são muitos e você pode evitar as cenas facilmente. (Sim, esqueci de colocar isso lá no texto e estou com preguiça de mexer em tudo para encaixar a informação).

 

SAIBA MAIS: Leia todos os posts sobre o Irã.

gabrielquerviajar.com.br

O Museu de História Natural de Londres, uma diversão para toda a família

Texto e fotos: Marcela Nóbrega

Londres tem museus incríveis (e gratuitos!), e um dos mais legais de visitar é o Museu de História Natural. Ele fica em South Kensington, ao lado de outros museus famosos, como o Victoria & Albert e o Science Museum, no complexo apelidado de Albertopolis (em referência ao Príncipe Albert, marido da Rainha Victoria).

O NHM, na sigla em inglês, é dividido em 5 grandes áreas: botânica, entomologia, mineralogia, paleontologia e zoologia. A área da paleontologia é frequentemente a mais concorrida e tem muitas filas, já que as crianças adoram ver os fósseis e modelos de dinossauro, além da seção de história interativa.

Aliás, uma coisa que torna o museu tão interessante é a interatividade das exposições. Na seção de paleontologia, pode-se aprender em painéis com sons e imagens sobre como era o mundo na era dos dinossauros e como eles entraram em extinção. Na parte de mineralogia, existem pequenas experiências práticas para entender o efeito da erosão, por exemplo: você controla o fluxo de água sobre um painel cheio de areia e observa o que acontece. Só não achei muito legal a sala de entomologia (estudo dos insetos), que logo de cara tem um besouro enorme em cima da porta e um escorpião gigante na entrada. Mas aí já é opinião minha mesmo – odeio insetos!

É uma visita bastante educativa e divertida mas, mais que isso, o lugar é lindo! Super imponente por fora e por dentro, é difícil não se admirar com a arquitetura românica alemã. O pátio central é enorme e você já dá logo de cara com o enorme “Dippy”, o esqueleto de um dinossauro Diplodocus, que fica ali bem no meio. O National History Museum costuma ser bem cheio, mas é possível encontrá-lo mais tranquilo em dias de semana na baixa temporada. A visita vale muito a pena e é totalmente gratuita!

Site oficial (em inglês):
www.nhm.ac.uk
Cromwell Road
SW7 5BD
Aberto diariamente das 10h às 17:50h.

Marcela Nóbrega
Jornalista por formação, social media por profissão e viajante por paixão. Conhece 18 países e deseja multiplicar este número.


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