O processo de cura (voltando pra casa)

Estou de volta à Amsterdam, depois de uma rápida passagem pelo Brasil devido à perda do meu irmão caçula. Foi uma viagem difícil, foi um trabalho pesado (físico e emocional), mas precisava ser feito e eu fiz.

Comprei a passagem de última hora, pegando o primeiro voo que me foi tecnicamente possível de pegar. Doze horas numa poltrona do meio, apertado, com dor nas costas (apesar de eu estar tão anestesiado que só notei depois), virado de duas noites meio que sem dormir, para chegar em Guarulhos e pegar o voo de conexão para a cidade onde moram meus pais e morava meu irmão.

Claro que o voo de conexão atrasou por causa do mau tempo, deu confusão, me mudaram de portão umas 350 vezes, acabou que cheguei na cidade meia noite e vinte, horário local. Dali, mais 50 quilômetros até a casa dos meus pais. Cerca de 21 horas de viagem depois de sair de Amsterdam, eu cheguei.

E a maratona começou.

Entre dar apoio aos meus pais e resolver coisas práticas, o tempo nos apertava, e meu coração já estava apertado. Limpar o apartamento do meu irmão, juntando os pertences pessoais dele está entre as coisas mais excruciantes que eu já fiz. Mas era importante fazer, eu queria fazer, eu precisava fazer.

De toda a forma, o dia de eu embarcar de volta à Amsterdam chegou, e apesar de estar dormindo em média 3 horas por noite (tanto pelo trabalho a ser feito em tão pouco tempo, quanto por motivos emocionais), quando o primeiro voo decolou, eu consegui um certo conforto emocional, uma sensação de “estou indo para casa”.

Eu sabia que o processo de cura havia começado.

Em São Paulo, eu teria seis horas de espera para a conexão, e durante esse tempo um amigo querido veio, a meu pedido, me fazer companhia.

Ele me pagou um almoço (eu não estava comendo muito esses dias – perdi quase dois quilos em uma semana), e me ouviu. Foi para isso que o chamei, para me ouvir, para que eu pudesse descarregar certas coisas que não poderia trazer comigo para Amsterdam. Eu falei, ele ouviu, ele falou, eu ouvi, e foi perfeito.

Ele é meu amigo há 26 anos, e é médico, e eu sabia que ele seria a pessoa certa, e ele foi.

A noite, na fila de embarque do voo KL 792 GRU-AMS, eu estava me sentindo leve, mas profundamente exausto, e me conformei que pelo menos eu dormiria em quaisquer condições, mesmo se tivesse que viajar de pé, como fazia no ônibus nos tempos de faculdade noturna.

Quando apresentei meu cartão de embarque para a funcionária, eu obtive em vez de um “verde, siga” um “vermelho, espere”.

Eu só pensei “ah, não, não agora, vai…”

A funcionária leu meu nome, conferiu meu passaporte, e disse:

— Poderia se encaminhar com a minha colega, ela gostaria de falar com o senhor.

Suspirei. Fazer o quê? Fui.

A funcionária da KLM me disse:

— Senhor Daniel, sei que as circunstâncias de seu voo não são as melhores, então gostaria de dizer que estarei bloqueando as 4 poltronas da sua fileira apenas para o senhor. Dessa forma o senhor pode por o apoio de braço para cima e se deitar e dormir um pouco. Eu leio o blog, e li o post sobre seu irmão. Minhas condolências. Tenha um bom voo.

Eu não podia acreditar. Eu fui inundado por uma onda de gratidão.

Assim que embarquei e sentei, um senhor logo ocupou uma das poltronas da minha fileira (ra uma fileira do meio), jogou as coisas dele na outra poltrona e estava no processo de jogar os travesseiros para longe dele (perto de mim), quando veio uma comissária de bordo:

— Essa é a sua poltrona, senhor?

—Não, mas é uma boa poltrona e está vazia…

—Não está vazia senhor, essa fileira inteira está reservada para um passageiro. Além disso, não é permitido trocar de assento antes da aeronave decolar. O senhor faça a gentileza de ocupar o assento designado em sua passagem.

Ele fez, e se retirou sem mais abrir a boca. Eu olhei para a comissária e disse:

—Obrigado… (eu estava tão exausto que não tinha energia nem para falar mais).

Ela respondeu:

—Foi um prazer, senhor. A equipe de solo me informou da sua condição. Minhas condolências. Se houver qualquer coisa que eu possa fazer pelo senhor, é só pedir.

Eu fui tratado assim por toda a tripulação.

Eu comi. Eu dormi. E quando eu acordei no meio da noite com a boca seca devido ao ar da cabine, eu apertei o botão de chamar o comissário de bordo. Ele veio em, tipo, três segundos. Com um copo de água na mão. “Algo mais, senhor?” Eu não precisei nem pedir.

Foi lindo.

E apesar disso, esse voo todo foi apenas mais um elo numa gigantesca cadeia de apoio e suporte que eu recebi das pessoas. Pessoas como os amigos queridos, que me deram apoio emocional e material (se oferecendo para e efetivamente pagando a passagem para o Brasil, por exemplo, sem prévio aviso).

Pessoas que enviaram uma verdadeira torrente de mensagens de apoio do mundo todo, em português, inglês, holandês, espanhol, que apesar de nem sequer me conhecer, toparam gastar um momento para dividir minha dor, uma dor tão intensa que eu jamais seria capaz de suportá-la sozinho.

Pessoas da família, que imaginava distante, mas não estavam, pessoas que eu nem sabia que me acompanhavam. Pessoas como a senhora da floricultura onde compramos flores para meu irmão e me apoiou pois quase desabei. Pessoas como a funcionária da KLM, quem nem sequer peguei o nome, que de alguma forma me achou e fez uma gentileza na hora crucial.

Amigos que gastaram horas de seu sono, de seu tempo com as próprias famílias apenas para me escutar chorando Minha maravilhosa esposa, que ficou aqui sozinha, gripada, cuidando dos meus dois filhos lindos, que me receberam com a intensa alegria infantil que só o reencontro com o papai pode trazer.

Um grupo tão inacreditavelmente grande de pessoas que jamais poderia listar a todos aqui (apesar de lembrar de todos), formou uma rede de apoio que cruzou fronteiras para pular e gritar “segura o Daniel, que ele está caindo”. E não me deixaram cair, e eu sou grato a cada um por isso.

Imensamente grato.

E naquele voo da KLM, enquanto eu deitava atravessado em 4 poltronas, imediatamente antes de cair em um sono longamente atrasado, eu pensei em meu irmão.

E, em vez de chorar, sorri.

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(Foto de domínio público, autor não pediu atribuição)

O artigo O processo de cura (voltando pra casa) foi retirado de Ducs Amsterdam.


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