Me parece bem natural que um país quase inteiramente coberto por montanhas tenha muitas rodovias maravilhosas, então não me surpreendi quando vi que a Geórgia tem pelo menos 3 estradas consideradas atrações turísticas.
O que me surpreendeu mesmo foi ter encontrado, em uma cidadezinha sonolenta no final de uma delas, o melhor hotel onde já me hospedei e que, para mim, deveria ser incluído nos guias como a continuação da baita experiência que é passear pela fantástica e histórica Rodovia Militar Georgiana.
Essa estrada que liga Tbilisi a Vladikavkaz (respectivamente a capital da Géorgia e a capital da república russa da Ossétia do Norte-Alânia) é uma das poucas que atravessam o Cáucaso em direção à Putinlândia e tem pelo menos 2 mil anos de idade.
Não, ela obviamente não é asfaltada desde os tempos em que Jesus Cristo operava milagres ao vivo, mas serve como uma ligação entre os dois lados da cordilheira caucasiana desde aquela época, já que é citada num livro escrito por um geógrafo contemporâneo de JC.
A transformação dela em estrada de verdade (uma obra que durou 63 anos) aconteceu nos anos 1800, pouco depois da Geórgia virar um protetorado da Rússia. O objetivo da empreitada – facilitar o tráfego de tropas russas para que o exército pudessem controlar melhor as montanhas e a própria Geórgia – acabou batizando a rodovia.
De lá para cá, muitos soldados russos e georgianos passaram por ali, junto com poetas e escritores (ela aparece em obras de Pushkin, Tolstoy, Dumas e outros), além de comerciantes, viajantes e… turistas.
Sim: turistas, como comprovam os cartazes dos anos 30 neste post, feitos pela Intourist, a antiga estatal de turismo da União Soviética, fundada pelo georgiano Joseph Stalin.
Todo esse povo viu muitas mudanças ao longo da rodovia no calhamaço de anos desde a sua militarização até hoje. Mas não viu grandes alterações nas principais atrações dela, muito mais antigas do que o domínio russo.
A primeira atração é tão próxima de Tbilisi que nem parece que você saiu da metrópole. É a cidade de Mtskheta, que já foi capital de um dos antigos reinos que hoje formam a Geórgia e ainda hoje é a capital espiritual do país, porque foi nela que o cristianismo se tornou a religião oficial do estado, no século 4.
(Infelizmente não vou entrar em detalhes sobre Mtskheta, porque o Murphy dos viajantes pegou carona no meu carro e não consegui parar na cidade para ver seus três Patrimônios da Humanidade: os mosteiros Jvari e Samtavro e a catedral Svetitstkhoveli.
Seguindo na estrada, logo é a vez de parar no lindíssimo forte Ananuri, do fim do século 17, nada menos que o modelo da capa do Lonely Planet Georgia, Armenia & Azerbaijan e, portanto, um dos maiores símbolos do turismo georgiano atualmente – até a próxima edição do guia, é claro.
O Ananuri fica bem em frente ao lago de uma represa e forma uma paisagem linda que por pouco não liquidou com ele nos tempos soviéticos. Na época, os comunas cogitaram elevar o nível do lago para inundar as duas igrejas que ficam dentro do forte, mas foram combatidos pelos moradores locais e largaram daquela ideia estúpida.
Então a Rodovia Militar Georgiana começa a subir, subir e subir sem parar, por curvas fechadíssimas, às vezes tomadas por gado e ovelhas, com alguns caminhões e muitos carros de passeio russos, além de uma sequência de montanhas-vale-montanhas que demora para passar por causa das dezenas de paradas que um turista apreciador de belas paisagens se sente obrigado a fazer.
Uma dessas paradas é num lugar interessantíssimo, posicionado estrategicamente para ter uma vista linda, mas com um nome estranho para quem conhece um pouco da relação entre russos e georgianos: o Memorial da Amizade Soviética-Georgiana (Soviet-Georgian Friendship Memorial), construído em 1983. Um mural enorme, que parece abraçar os visitantes, com mosaicos ilustrando fatos marcantes das histórias georgiana e russa.
É por ali que a estrada chega ao seu cume (2379 metros) e começa a descer um pouco em direção ao ponto final da viagem, a pequena cidade de Stepantsminda, conhecida popularmente pelo antigo nome de Kazbegi, dado em homenagem a um escritor que viveu lá há mais de um século.
A cidade propriamente dita não tem muito para ser visto. É um lugar minúsculo, com menos de 3 mil habitantes, sem construções charmosas ou coisa do tipo.
Mas tudo muda quando o assunto é os arredores de Stepantsminda.
A atração mais escandalosa é o gigantescamente belo Monte Kazbek, o maior das redondezas. Um lugar cheio de lendas – dizem que foi nele que Prometeu ficou acorrentado por ter roubado o fogo do Olimpo para os homens – e que faz você lembrar que não passa de um cocozinho de barata neste mundo, diante dos seus 5047 metros de altitude e 2353 metros de proeminência (ou seja: ele sobe 2353 metros na frente dos seus olhos, do chão que você enxerga até o topo).
Como se não bastasse ter uma montanha dessas no quintal da sua casa, o pessoal que habitava Stepantsminda no século 14 resolveu construir algo para deixar a visão do Monte Kazbek ainda mais embasbacante: a igreja ortodoxa georgiana Tsminda Sameba.
Do mesmo jeito que a cidade, a Tsminda Sameba não é maravilhosa quando vista de perto. Mas quando vista um pouco mais de longe, enquadrada pelo Kazbek ou pelo Monte Shani – que fica logo em frente e tem 4451 metros – é daquelas visões que fazem você pensar que a vida é bela e que você é a pessoa mais feliz do mundo.
À noite, então, quando ela vira um pontinho laranja naquela imensidão, com a neve do Kazbek azulada pelo luar, é de fazer o sujeito respirar fundo e pensar em nunca mais voltar para casa.
Ainda existem outras atrações na região de Stepantsminda, muitas. Praticamente todas são ligadas a natureza, trekking, montanhismo e tal, mas só descobri isso quando estava fazendo o check-out do hotel e não tinha mais tempo para aproveitar nada – minha volta ao Brasil começava na madrugada seguinte.
Naquele momento, eu me arrependi pela segunda vez por não ter me programado para mais de uma noite na cidade. E o primeiro arrependimento havia sido justamente no momento em que entrei naquele hotel onde estava fazendo o check-out, o Rooms Kazbegi.
Não sei se você já percebeu que este blog nunca teve um post de review sobre um hotel. Não foi por política editorial, não. Foi apenas falta de vontade de dedicar um espaço tão grande a algum destes estabelecimentos, por nunca ter visto nada de tão especial neles, apesar de já ter conhecido alguns excelentes.
Mas no Rooms Kazbegi, a coisa mudou. Percebi que precisava escrever algo no blog logo que cheguei e caminhei pelo salão e pela varanda – uma impressão que foi aumentando a cada hora passada lá dentro.
Tudo que vi nele foi perfeito, até os poucos detalhes imperfeitos. A localização, a arquitetura, a decoração, a comida e (principalmente!) as pessoas da equipe. Ao contrário dos outros poucos hotéis 5 estrelas onde já fiquei, no Rooms Kazbegi todos os funcionários são simples, descontraídos e informais, o que deixa o ambiente do mesmo jeito.
Sério: economize em algum outro hotel da sua viagem pela Geórgia, durma num albergue vagabundo, fique uns dias a pão e água, sei lá, mas não deixe de passar uma noite neste lugar e nem pense em escolher algum quarto que não tenha vista para o Monte Kazbek.
Se for possível, também fique mais de uma noite, para aproveitar o hotel e para conhecer as outras atrações de Stepantsminda.
Pelo conjunto da obra, a Rodovia Militar Georgiana merece.
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Observações:
1 – As fotos que mostram o Rooms Kazbegi não são minhas. Tentei fazer algumas, mas o pouco tempo e a falta de habilidade deste fotógrafo não conseguiram captar o lugar de verdade. As que aparecem neste post foram gentilmente cedidas pelo próprio hotel e são de autoria de Ana Svanidze, Alex Iskandarov, Davit Chachanidze, Hans Heiner Buhr e Nick Paniashvili.
2 – Sim, eu paguei cada centavo da conta do hotel, ora, bolas.
Onde fica?
Dentro da Geórgia, a Rodovia Militar Georgiana começa em Tbilisi, a capital do país, e vai até a fronteira com a Rússia. Depois ela segue adiante até Vladikavkaz, capital da república russa da Ossétia do Norte-Alânia.
A última cidade georgiana antes da fronteira russa é Stepantsminda (Kazbegi). São mais ou menos 150 km de distância entre as duas cidades.
Como fazer o trajeto?
Eu fui com um carro alugado, mas é possível contratar um táxi (peça recomendações no seu hotel em Tbilisi ou siga as dicas do Pedro, que pegou numa estação de ônibus de Tbilisi) ou ainda de transporte público. Porém, com a última opção, você não vai poder parar nos lugares para fazer fotos ao longo da viagem.
Dá para fazer bate-volta?
Dá, mas é um pecado fazer isso. Durma lá, por favor.
É fácil dirigir pela estrada? A sinalização é boa?
A sinalização é ótima e a estrada é muito boa em dias bons. Alguns pedaços estavam em obra quando passei, mas isso deve terminar em algum momento.
Tenha muito cuidado se estiver em período de neve ou com tempo ruim.
Quanto tempo leva para ir de Tbilisi até Stepantsminda?
Depende da sua vontade de parar pela estrada para fotografar. Eu, de carro, levei ao redor de 5h30, incluindo uma pausa para um café na vila de Pasanauri.
Dá para seguir adiante na estrada e cruzar para a Rússia?
Hoje dá (o Guilherme foi), mas ouve tempos em que não dava, porque a fronteira era fechada para estrangeiros. Procure informações atualizadas quando você for (pergunte no seu hotel).
Como se faz para subir até a Tsminda Sameba?
Você pode ir a pé (o Pedro foi), pode alugar uma bicicleta no seu hotel, pode ir a cavalo, de táxi ou com o seu próprio carro, se estiver com um.
Mas atenção: a estrada para lá é péssima. Repito: pés-si-ma. Só meta o seu carro alugado se ele for 4X4 e se você souber dirigir em condições muito, muito ruins. Os táxis, por exemplo, são sempre jipes ou caminhonetes. E tenha cuidado redobrado se houver neve no caminho.
Para o trajeto, calcule 30 minutos de subida de carro, mais 30 minutos de descida. Também fique de olho no pôr do sol, que é cedo em determinadas épocas do ano, já que as montanhas fazem sombra sobre a cidade.
Ah, para chamar um táxi, peça no seu hotel. O meu custou ao redor de 30 USD pelo carro. Ou seja: se você dividir com mais pessoas, sai mais barato.
Dá para entrar na Tsminda Sameba?
Sim, e vale muito fazer isso, mas não é permitido fotografar. Quando fui, fazia muito frio e a porta estava fechada, porque havia um aquecedor ligado lá dentro, junto com o monge.
Tem horário de visitação na igreja?
Tem, mas não anotei. Não se preocupe, o pessoal do seu hotel vai saber indicar e o taxista não vai subir se ela já estiver fechada.
Tem restrições de roupas e tal?
Tem.
Dá para subir no topo do Monte Kazbek?
Dizem que sim. O Lonely Planet indica algumas agências que fazem isso.